Uma conversa clínica com quem está começando a escutar
Esses encontros foram me mostrando que,
independentemente do tempo de experiência, há perguntas que retornam. Perguntas
sobre técnica, sobre limites, sobre o que fazer quando o sofrimento do outro
não se organiza em sintomas claros, quando a interpretação parece insuficiente
ou quando a sensação de não estar ajudando começa a pesar. Muitas dessas
conversas não giravam em torno de escolas teóricas específicas, mas da
experiência viva de estar diante de alguém que sofre e de se perguntar,
silenciosamente, qual é o lugar possível do terapeuta ali.
É pensando nessas pessoas - nos
estudantes que estão dando seus primeiros passos, nos profissionais que ainda
tateiam o próprio estilo clínico, nos colegas que já caminharam bastante e,
ainda assim, se permitem duvidar - que escrevo este texto. Não como manual, nem
como orientação técnica definitiva, mas como um compartilhamento de percurso,
construído a partir do que a clínica foi me ensinando com o tempo.
O que segue não é um conjunto de
respostas prontas, mas uma tentativa de colocar em palavras uma ética de escuta
que fui construindo aos poucos. Uma ética que se sustenta menos na pressa de
compreender e mais no cuidado de não interromper aquilo que, em cada paciente,
ainda tenta nascer.
Quando comecei a atender, eu acreditava
que ser psicoterapeuta era, sobretudo, entender. Entender rápido. Entender bem.
Entender antes do paciente, se possível. Eu estudava, anotava, interpretava.
Havia em mim uma urgência silenciosa: se eu conseguisse nomear o sofrimento do
outro, talvez ele diminuísse. Talvez eu estivesse fazendo um bom trabalho.
Com o tempo - e não foi pouco tempo - a
clínica foi me ensinando outra coisa.
Muitos pacientes não chegam trazendo
conflitos organizados ou sintomas que pedem decodificação simbólica. Eles
chegam com algo mais primário e mais difícil de nomear: uma sensação difusa de
vazio, irrealidade, cansaço de existir. Não perguntam diretamente “o que isso
significa?”, mas comunicam, de muitas formas, a experiência de não se sentirem
plenamente existentes.
Foi nesse contexto que uma pergunta
passou a orientar meu trabalho clínico: como alguém começa a existir como alguém? Não como paciente, não como
diagnóstico, não como sujeito funcional ou adaptado - mas como alguém que sente
que a própria vida lhe pertence.
Na prática clínica, essa pergunta exige
reconhecer que há sofrimentos que não se organizam a partir do conflito
neurótico clássico. Há pacientes cujo sofrimento está ligado a falhas precoces
de sustentação emocional, falhas que comprometeram a continuidade da
experiência de ser. Nesses casos, a interpretação - especialmente quando
precoce - pode produzir mais fragmentação do que integração.
Aprendi, muitas vezes errando, que
interpretar nem sempre é cuidar. Em certos momentos, interpretar pode se tornar
uma intervenção intrusiva. Não por falta de técnica, mas por inadequação
temporal. O paciente ainda não dispõe de um self suficientemente integrado para
se beneficiar da interpretação. Antes disso, ele precisa de experiências de
sustentação.
No início da carreira, a interpretação
funciona quase como um salva-vidas. Ela nos protege da angústia do silêncio, da
sensação de não saber, do medo de “não estar fazendo nada”. Mas aprendi - muitas vezes tarde demais — que interpretar cedo demais pode ser uma forma
elegante de interromper o que ainda está tentando nascer.
Há pessoas que não precisam ser
interpretadas. Precisam ser sustentadas.
Demorei para aceitar isso. Sustentar dá
mais trabalho do que interpretar. Sustentar exige que eu esteja inteiro, e não
apenas intelectualmente preparado. Exige tolerar não compreender tudo, não
organizar tudo, não avançar no ritmo que aprendi nos livros. Exige suportar ver
alguém existir de modo precário, instável, confuso - sem tentar consertar isso
imediatamente.
Ao longo dos anos, fui compreendendo que
minha função clínica, em muitos atendimentos, não era promover insight, mas não
interromper o processo de vir-a-ser do paciente. Isso implica oferecer um
enquadre estável, uma presença confiável e uma relação que não exija desempenho
psíquico imediato.
Assumir a clínica como sustentação do ser
modifica profundamente a posição do terapeuta. Passamos a reconhecer que o
silêncio pode ser terapêutico, que a regressão pode ser necessária e que o
ritmo do paciente deve prevalecer sobre a ansiedade do terapeuta por
resultados.
Nesse ponto, o conceito de falso self
também mudou de lugar para mim. Ele deixou de ser algo a ser desmontado e
passou a ser compreendido como uma organização defensiva necessária, construída
para garantir sobrevivência psíquica em contextos ambientais insuficientes. O
trabalho clínico não é eliminar o falso self, mas criar condições para que o
verdadeiro self possa emergir com segurança.
Essa emergência não acontece por
convencimento, mas por experiência. Ela aparece quando o paciente sente que não
será invadido, corrigido ou abandonado. Quando percebe que pode existir no
espaço clínico sem precisar se adaptar constantemente às expectativas do outro.
Um indicador clínico importante desse
processo é a possibilidade de brincar. Brincar, aqui, não no sentido lúdico
infantil, mas como capacidade de transitar entre realidade interna e externa
com relativa liberdade. Quando o paciente começa a brincar - com ideias,
palavras, imagens, associações ou silêncios - algo da vitalidade psíquica está
sendo restaurado. Onde não há brincar, a vida tende a se tornar obrigação,
desempenho, controle. A clínica, quando perde o brincar, vira mais um espaço de
exigência. Dentre as referências, recomendo que leia livros do Winnicott.
Nesse percurso, encontrei grande
ressonância no humanismo, no existencialismo e na psicologia budista. Cada uma
dessas abordagens, à sua maneira, sustenta uma ética clínica baseada no
respeito à experiência vivida e na recusa de intervenções invasivas ou
normativas. Elas nos lembram que o sofrimento humano não é um erro a ser
corrigido, mas uma experiência a ser acolhida e compreendida no tempo possível.
Uma das aprendizagens mais importantes
foi reconhecer que nem todo sofrimento pede interpretação. Alguns pedem
presença. Presença estável, não intrusiva, capaz de sobreviver ao silêncio, à
dependência e à desorganização temporária do paciente. Presença que diz, sem
palavras: eu fico.
Essa posição clínica exige maturidade
emocional do terapeuta. Exige tolerância à incerteza, à lentidão e ao
sentimento de “não estar fazendo nada”. Exige, sobretudo, a capacidade de
sustentar o paciente sem recorrer precocemente à técnica como defesa contra a
própria angústia.
Com o tempo, minha concepção de saúde
também se transformou. Saúde deixou de ser ausência de sofrimento ou resolução
de conflitos. Passei a reconhecê-la quando o paciente começa a sentir que a
vida vale a pena ser vivida, mesmo em meio à dor. Quando ele se sente real,
presente, autor da própria experiência - não apenas funcionando.
Se você está começando agora na clínica,
talvez eu possa lhe dizer algo que ninguém me disse com clareza: você não
precisa saber tudo. Não precisa interpretar tudo. Não precisa salvar ninguém. O
que você precisa, sobretudo, é não destruir o que ainda tenta nascer.
Ao longo da prática clínica, aprendemos
que nem todo sofrimento pede compreensão imediata, e que nem toda intervenção
precisa se traduzir em interpretação. Há momentos em que a tarefa terapêutica
fundamental é oferecer um espaço suficientemente estável para que a experiência
possa se organizar por si mesma.
Para quem inicia na clínica, talvez seja
importante lembrar que o trabalho mais delicado não é acelerar processos, mas não
interromper aquilo que ainda tenta nascer. Sustentar a escuta, respeitar o
tempo do paciente e reconhecer os limites da técnica são gestos simples, mas
profundamente transformadores.
Em muitos casos, a psicoterapia não
começa quando o paciente entende, mas quando ele passa a se sentir real. E
acompanhar esse processo, com presença e responsabilidade, já é um exercício
clínico de grande profundidade.
Em muitos casos, ser psicoterapeuta é
simplesmente oferecer um espaço suficientemente confiável para que alguém
possa, talvez pela primeira vez, começar a existir como alguém.
E isso, do ponto de vista clínico, já é
um trabalho profundo.
Um abraço,
Psicólogo
Paulo Cesar T. Ribeiro
- Psicoterapeuta
de adolescentes, adultos, casais e gestantes – Presencial e Online.
- Psicólogo
Orientador Parental
- Escritor.
- Contatos: www.psipaulocesar.psc.br

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